2006-02-09

Sobre ética e religião - uma visão pessoal

Muitos dizem que os valores éticos e morais que regem as nossas sociedades são o maior contributo das religiões, e que não existiriam se não fossem elas. Na minha opinião, isto é simultaneamente falso e verdadeiro.

Falso, porque na realidade esses valores existem independentemente de qualquer decreto religioso, e constituem um resultado óbvio da reflexão acerca da condição humana e dos nossos papéis no mundo enquanto indivíduos e enquanto espécie. Conceitos de bem e de mal são úteis para identificar os comportamentos que, inerentemente, trazem mais utilidade à população humana em geral, e por outro lado, desprezam essa utilidade em detrimento do proveito individual.

Porém, a quantidade de pessoas que não consegue ver a floresta por estar tão preocupada com as árvores é alucinante, e ultrapassa largamente aqueles que conseguem, através de reflexão e inspiração, chegar à conclusão do senso comum acerca do interesse em manter um código de ética e moral a nível da sociedade. A maioria das pessoas não tem o mínimo de interesse pelo bem comum, e apenas se interessa pelo próprio proveito e por aquilo que lhe é imediatamente adjacente - muitas vezes, o esforço pela sobrevivência a tal obriga, sobretudo quando consideramos as épocas mais remotas, em que as estruturas das sociedades existentes não previam aquilo a que actualmente chamamos o "estado-providência", que se esforça activamente por assegurar um mínimo de condições de vida a todos os seus elementos.

A religião surgiu como resposta a esta desproporcionalidade, uma forma de incutir estes códigos na populaça, através de um sistema de castigos e recompensas - alguns desses incentivos bem reais, outros (os maiores) convenientemente colocados numa "vida depois da morte" da qual nunca ninguém voltou para contar. Esta é a parte verdadeira da proposição inicial: apenas um sistema assim poderia espalhar estes conceitos, individualmente "contra natura" mas com perfeito sentido ao nível da sociedade e da espécie, pela generalidade da raça humana. Sempre foi, e é, esta a utilidade da religião.

Os ditos "profetas", terão sido os mais iluminados e carismáticos dos que viram a utilidade destes códigos de conduta, utilizando os seus poderes de persuasão para arrastar largas multidões ingénuas, hipnotizadas pelas promessas de felicidade eterna se entrassem "na linha". O problema é que não se pode considerar que qualquer um desses profetas tivesse transmitido os seus ensinamentos na sua forma mais básica e pura - fosse como fosse, cada um deles colocou sempre um certo tempero nos seus discursos e escritos, uma miscelânea de influências retiradas da sociedade do seu tempo, de concepções erróneas provocadas pelos conhecimentos limitados da época, e das suas próprias opiniões subjectivas acerca de assuntos que, à primeira vista, nada têm a ver como ética ou moral - e por vezes, não têm mesmo.

Daí que cada religião adquiriu características diferentes, por vezes diferindo mesmo no conjunto de preceitos éticos que aconselhava aos seus seguidores. Séculos de isolamento, fusões, cismas, interpretações e o simples peso da história acentuaram essas diferenças, ao ponto que a certa altura, os conceitos fundamentais de ética e moralidade foram colocados de lado, em detrimento de rituais, dogmas e outros elementos que, se dividiam cada vez mais claramente as linhas entre religiões, tinham o condão de aumentar cada vez mais a militância dos seus seguidores. O resultado: intolerância e inúmeras guerras em nome da religião, que permanecem ainda hoje.

Para o resto de nós, que não se revê nessas rivalidades nem em qualquer uma das milhentas facções que compõem o panorama religioso, a religião perdeu a sua utilidade. Já não precisamos da ameaça de castigo nem da promessa de recompensa para seguir aquilo que sabemos ser certo. Com a prosperidade sem precedentes das sociedades ocidentalizadas, muitas mais pessoas conseguiram desviar a sua atenção do esforço de sobrevivência durante o tempo suficiente para, baseadas em exemplo vindo da sociedade, mas também por reflexão própria, construir na sua mente as bases da moralidade e ética que constituem as melhores alternativas para a sobrevivência da humanidade. Era também a isto que Nietzche se referia quando escreveu, metaforicamente, que o homem tinha morto Deus.

Há 57 anos atrás, as nações deste mundo reuniram-se para reunir num documento os mais úteis e fundamentais princípios que, no seu conjunto, definem uma sociedade virada para o bem - e por oposição, aquilo que constitui o mal, através da negação desses princípios. A Declaração Universal dos Direitos do Homem é, hoje em dia, muito mais útil nos seus 30 artigos do que as milhares de páginas da Bíblia ou do Corão. É pena que tão poucas pessoas estejam cientes disso - mas felizmente, esse número tem tendência a aumentar.